O Lado Negro do Petróleo (IV/IV)

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Para fazer jus, ao título remato com razões de carácter geopolítico que a opinião pública teima em ignorar:

  • Comecemos pelo simples facto de que o principal consumidor de petróleo é também um dos principais importadores. Se pensa que estou a falar da China, quase que acertava – hoje consomem praticamente o mesmo, por ano. A grande diferença reside no facto dos Estados Unidos da América (EUA) serem também um dos maiores produtores ainda que exporte muito pouco, ou nada. Onde quero chegar? Atente neste quadro:screen shot 2014-12-18 at 10.30.01 amQuantos destes países exportadores de petróleo estão sob esfera de influência dos EUA, ou se revelam não-hostis para os seus interesses? E quantos estavam há 20 anos? E há 30? Ou mediante expedições militares de legitimidade (muito) questionável, ou recorrendo à sua organização governamental sombra – a CIA –, os EUA têm levado a água ao seu moinho no tabuleiro geopolítico. Invariavelmente, os poços de petróleo estão sempre metidos ao barulho.
  • Desde que me conheço como gente, lembro-me de nos ensinarem na escola, que o petróleo era uma matéria-prima vital para todo o mundo e que se esperava que as suas reservas esgotassem mais ou menos uma geração. Isso foi no final dos anos 80 e, quando se começaram a mostrar filmagens de ataques aéreos no Iraque em 1990, entendi que o acesso ao crude não era para se negligenciar. Mais de 20 anos decorridos, a premonição assustadora mantém-se, ainda que hoje em dia se falem em 50 anos, tendo em conta o ritmo de exploração. Serão dados rigorosos? Farão algum sentido? Quem fez as estimativas? Quem beneficiaria com o esgotamento das reservas de petróleo no resto do mundo, quando está sentada sobre um manancial soberbo, do qual não abre mão? E se de facto “alguém” souber que a escassez de petróleo é um logro? Isso não iria minar toda a estratégia de assegurar fontes de abastecimento seguras por regimes escolhidos a dedo? Isso não faria com que o petróleo deixasse de ser “tããããooo” importante? Às tantas também os EUA perderiam muito do seu aparato de superpotência…
  • Antes, referi como o desfecho da reunião da OPEP em 27 de Novembro último fez cair a cotação internacional do crude pela recusa da Arábia Saudita em reduzir a sua quota de produção. As primeiras reacções – vindas do outro lado do oceano – apontaram o dedo aos Sauditas, insinuando que a sua intenção era a de eliminar a concorrência dos projectos norte-americanos (EUA e Canadá), que exploram jazidas de petróleo menos convencionais e recorrendo a tecnologias mais dispendiosas. A acusação referia ainda o baixíssimo custo de extracção de petróleo Saudita (abundância, baixa profundidade, crude de elevada qualidade) lhes permitia aguentar um período mais ou menos longo de menores retornos. E por que haveria o regime mais do que amigável da Arábia Saudita pisar os calos aos aliados norte-americanos? A isso já não conseguiram responder…(5)
  • Já foi aventado aqui que, além do preço contratualizado pelos barris de petróleo extraídos (não os dos mercados internacionais), o crude é uma importante fonte de receita de impostos e royalties para os regimes de muitos países, inclusive de países hostis aos interesses americanos (ver imagem). screen shot 2014-12-11 at 9.05.03 amOra, não fará mais sentido interpretar esta descida mais expressiva da cotação internacional como uma tentativa de fragilizar governos que não morrem de amores pelos EUA e utilizar um aliado para levar a tarefa a cabo? Sublinhe-se que este tipo de “jogada de xadrez” já foi utilizada no passado, mais que uma vez (6)…Pergunto: quem é que sofre mais com a queda do preço do petróleo, não estando debaixo da asa protectora dos EUA? Pergunto novamente: seria sensato desafiar para uma guerra aberta um adversário, cujo poderio possa infligir muitas perdas (materiais e humanas) e cujo vencedor teria mais a lamentar que a festejar? E se se conseguisse enfraquecer o adversário por dentro, evitando assim uma carnificina? Seria de génio, não concordam?

Não é à toa que lhe chamam “ouro negro” , pois não?!

(5) Há uma razão mais cabal para esta decisão: a Arábia Saudita, pura e simplesmente não quis perder quota de mercado. Principalmente, pelo facto de se tratar do maior exportador de petróleo. Como foi argumentado, há muitos incumprimentos nas quotas de produção da OPEP – é muito difícil controlá-las – e ainda para mais há contractos de fornecimento com condições estabelecidas há algum tempo, com preços necessariamente distintos daqueles vigentes nos mercados financeiros internacionais. Se fechasse a porta a um cliente – com base na redução de quotas de produção – ele ia bater a outra.

(6) A Arábia Saudita já recorreu a este tipo de táctica para refrear a animosidade demonstrada no passado – década de 80 – por parte dum vizinho incómodo: o Irão. Ao reduzir os fluxos provenientes do comércio externo e fiscais a crise económica que se instalou no Irão fê-los abandonar os planos de corrida às armas.

O Lado Negro do Petróleo (III/IV)

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Tal como foi defendido antes, para a definição daquilo que é a cotação internacional do petróleo, contribuem variadíssimos factores. Foi também argumentado que os mais preponderantes até podem não ser aqueles que estão à vista de todos e muito menos aqueles de carácter estrutural/fundamental. Referiu-se também que a acção dos especuladores, na maior parte dos casos, invalida qualquer explicação racional a certas flutuações de mercado e nunca são analisadas como determinantes da evolução dos preços.

Para dar alguns exemplos de índole técnica:

  • Quase nunca, os comentadores convidados a opinar sobre a evolução da cotação internacional do petróleo, se detêm no facto deste estar cotado em dólares (USD). Ora, apesar de ser a divisa de referência a nível mundial, não é a que todos utilizam. Por isso, quando em termos nominais, no curto prazo, o USD deprecia face ao Euro (EUR) por exemplo, o detentor da moeda europeia ganha poder de compra, certo? Com os mesmos EUR pode comprar mais barris de petróleo. Durante muito tempo, enquanto a moeda americana foi intencionalmente depreciada – pelas injecções massivas de moeda no sistema financeiro mundial por parte do banco central americano (FED) ao abrigo do plano de monetização de dívida pública (quantative easing) – muitos negociantes da matéria-prima assim como regimes de países como a China (que importa a quase totalidade do petróleo que consome) constituiu reservas importantes. Quem diz de petróleo, diz de outras matérias-primas, principalmente as não-perecíveis, também transaccionadas em USD: metais e outros minérios. Analisem a evolução do USD e da cotação do petróleo, podem encontrar uma correlação interessante, e quase sempre negligenciada pela comunicação social (3);
  • Ainda analisando o efeito cambial: houve muitos aforradores, fundos soberanos de investimento e até especuladores, que com receio que as moedas soberanas pudessem ser substituídas, ou perdessem a sua faculdade de reserva de valor, desataram a comprar activos tangíveis. Foi no meio deste frenesim que até as moedas virtuais – bitcoin é a mais conhecida – ganharam alguns adeptos. Há cerca de 3 anos, no auge da crise de credibilidade do euro – com os naturais efeitos de arrasto sobre as outras divisas, houve muitos aforradores/investidores/especuladores que preferiram “aparcar” as suas poupanças/excedentes de tesouraria em bens tangíveis e facilmente transaccionáveis. O ouro também foi beneficiário desta tendência que, entretanto – pelo afastamento do perigo imediato do colapso das divisas soberanas –, já perdeu “apoiantes”;
  • A queda brusca e aparatosa da cotação internacional do petróleo pode indiciar que a maioria dos participantes do mercado estariam posicionados para a manutenção em alta dos preços do crude. Talvez por isso tivessem as estratégias de cobertura de risco montadas só para acautelar uma eventual subida e nunca a descida. O desmantelar de posições perdedoras poderá ter criado um efeito bola de neve sobre todo o mercado;
  • Não é incomum na indústria da gestão financeira de activos montar estratégias que envolvam vários activos no sentido de tirar partido de correlações estatísticas vigentes, durante determinados períodos. Muitas delas estão assentes em algoritmos de execução automática. Enquanto as regularidades se mantêm, os trades continuam a ser postos em prática. O pior é quando essas correlações perdem significância, ou começam a falhar. A reversão destas operações normalmente leva a movimentos bruscos nos mercados financeiros (4);
  • Quando há muita folga financeira e se consegue obter crédito facilmente, fazem-se muitos disparates e coisas raras. Pois bem, o leitor sabia que depois dos grandes bancos de investimento terem sido resgatados com dinheiros dos contribuintes entre meados de 2008 e 2009, se dedicaram ao negócio do ouro negro em larga escala? E sabe o que fizeram para ganhar “mais uns cobres”? Compraram quantidades enormes de barris de petróleo – fala-se que em determinado momento havia mais de 100 milhões de barris de petróleo nos seus livros – armazenados em petroleiros ancorados em portos marítimos. Para quê? Depois de ter feito um pico em Julho de 2008 a cotação internacional do petróleo caiu abruptamente. Como os preços dos fretes marítimos caíram também aos trambolhões, os espertalhaços na banca de investimento dedicaram-se a fretar petroleiros, pagar as taxas portuárias e a comprar petróleo como se não houvesse dia seguinte. Para quê? Simples: vendê-lo a jusante…Supertanker_001

Hoje em dia, pelos vistos, os grandes bancos de investimento abandonaram o ramo. No entanto, há alguns seguidores. Fala-se em cerca de 12-15 milhões de barris de petróleo flutuante, nos dias que correm.

  • Há mais exemplos mirabolantes mas como não quero esgotar a paciência do leitor fico-me por aqui.

(Continua)

(3) Aproveito para desmontar outra falácia veiculada pelas companhias petrolíferas que refinam e distribuem, como a Galp, (já analisamos as empresas integradas) quando entre 2007 e 2009 culpavam a escalada da cotação internacional do crude para cobrar (bastante) mais nos combustíveis que vendiam. Primeiro, o crude que compram tem preços contratualizados com os fornecedores e não são os cotados internacionalmente. Segundo, mesmo que fossem, no período em questão, o USD depreciou e de que maneira face ao EUR. Com isto se quer dizer que em termos líquidos a subida em EUR no preço do petróleo entre 2007-2009 não foi assim tão expressiva.

(4) Estávamos em 2008 a meio de toda a turbulência nos mercados financeiros. Quando se já se começava a instalar o pânico pela eventual repercussão catastrófica na economia mundial, eis que a cotação internacional do petróleo começa a escalar na vertical” chegando quase aos USD 150 por barril. Fizeram o pino para tentar explicar tal aberração lógica. “Não fazia sentido nenhum!”. Lembro-me que alguns comentadores mais “radicais” avançarem que podia estar a ganhar forma um cenário cataclísmico. Pois bem, se se tivessem dado ao trabalho de fazer o trabalho de casa teriam sabido, um dia ou dois de pois do petróleo ter atingido o seu máximo, que tudo não passou do colapso dum hedge fund que assumira posições vendedoras altamente alavancadas. A verdade é que este fundo teve de liquidar as suas posições. Como? Comprando! Ao fechar posições muito avultadas levou a uma escalada que certamente arrastou muitos traders posicionados da mesma forma. Por que terá sido obrigado a fechar tudo? Uma de duas: ou os bancos que lhe alimentavam as posições alavancadas lhe “tiraram o tapete”, obrigando a repor o crédito concedido; ou, o petróleo não caiu como esperavam. A alavancagem permite retornos ampliados quando se ganha mas pode fazer miséria quando não se acerta. Em mercados financeiros estar certo na hora errada pode levar qualquer trader à ruína!

O Lado Negro do Petróleo (I/IV)

cabeçalho

Ainda que bem recebida por inúmeras famílias e empresas espalhadas por todo mundo, tem causado espanto a descida acentuada e abrupta do preço do petróleo. No entanto, uma leitura mais atenta e documentada sobre as idiossincrasias desta matéria-prima permitirá entender melhor o porquê de tal queda e dos factores que influenciam a sua cotação.

Apesar das muitas teorias avançadas na tentativa de explicar tal evolução – umas mais plausíveis que outras – a verdade é que o preço do “ouro negro” obedece a condicionantes, que, regra geral são ignorados, pela opinião pública, que atiram por terra todas as ideias pré-concebidas (intencional, ou levianamente veiculadas).

Comecemos pela bitola do preço do crude, que chega a ser mais referenciado nos boletins de informação que o preço dos combustíveis: a sua cotação nos mercados de futuros. Não há nada mais enganoso, para a opinião pública, que enfocar a atenção nesta cotação. Por quê? Muito simples. Todos sabemos que hoje em dia, com poucas centenas de euros, qualquer pessoa pode abrir uma conta de trading e transaccionar seja que activo for, incluindo o petróleo cotado nos principais índices de referência, através de instrumentos derivados (futuros, CFDs, warrants, por exemplo). Para esse preço, normalmente do contrato de futuro com a maturidade mais curta, (1) concorrem não só as opiniões especulativas da miríade de pequenos “apostadores”, como também de pesos-médios e, sobretudo, dos grandes tubarões do mundo financeiro, que movimentam milhões de contractos por dia que valem milhões de barris de petróleo. Agora, interrogue-se o leitor, quantos destes milhões de barris efectivamente trocam de mãos, ou quantos é que são realmente entregues ao titular destes instrumentos derivados?! Se pensou em “nenhum”, não terá errado por muito. Já agora, quantos barris de petróleo é que o leitor consome por dia? Ou por mês? Da matéria-prima, tal e qual? Nenhum. Certo? “Ah! Mas abasteço o automóvel todas as semanas…” Ok, mas isso é outra coisa. Já lá iremos…

O que se quer dizer com esta chamada de atenção? Que a cotação que releva para a economia mundial, e mais concretamente de qualquer país, que não seja produtor e exportador de crude, não é a dos instrumentos financeiros.

Retomando a questão levantada atrás sobre o consumo de barris de petróleo. Se esta fosse colocada a uma empresa “petrolífera”, obviamente a resposta seria outra. E o preço a que “adquire” a matéria-prima para transformá-la em combustíveis, por exemplo? Será a dos mercados financeiros? Não. Então, por que é que os porta-vozes das empresas “petrolíferas” vêm sempre justificar-se com a “cotação nos mercados internacionais” para fazer flutuar o preço dos combustíveis?

Aprofundemos o tema “empresas petrolíferas”. Na realidade, o uso desta expressão para definir as empresas que “trabalham” com petróleo revela-se demasiado vaga. Neste meio, o mais normal é o leitor enumerar as empresas integradas que abarcam todas as fases compreendidas entre a prospecção de “ouro negro” e a distribuição de combustíveis. Não obstante, pelo meio há operações como a extracção, depuração, transporte, refinação, até chegar às estações de serviço. Empresas que abarquem todas estas fases não são muitas, a nível mundial. Trata-se de organizações colossais, tecnologicamente muito avançadas, que empregam milhares de pessoas em todo mundo, cujos quadros estão pejados de profissionais altamente qualificados nas mais variadas áreas do conhecimento, que geram mais dinheiro que a maioria das economias mundiais e que se fazem valer dos argumentos mais convincentes para “persuadir” as elites dos países “donos” de importantes jazidas de crude – sobretudo, daqueles em vias de desenvolvimento, e sem capacidade de investimento público, nem meios tecnológicos para extraí-lo (2) – para recebê-los de braços abertos no seu terraço. Quando uma representação destes titãs bate à porta para discutir a possibilidade de extrair petróleo no “quintal” destes países menos apetrechados nunca vêm dispostos a negociar muito. Além das prendas de “cortesia” para os “anfitriões”, trazem com eles investimento, postos de trabalho, pagamento de royalties e de impostos. Em troca, negoceiam contractos de exploração de muito longo prazo e, um preço marginal balizado pelos barris de petróleo extraídos. Se a cotação nos mercados internacionais servir de alguma referência, será, principalmente, para indexante do cálculo dos royalties e dos impostos a pagar no país abençoado pela existência de “ouro negro” no seu território, ou eventualmente para rever os preços por barril contratualizados.

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Por isso, quando as empresas “petrolíferas” invocam a cotação internacional do preço da matéria-prima como justificante para fazer variar o preço dos combustíveis, não estão a fazer mais do que navegar o desconhecimento do consumidor de combustíveis na matéria. Aliás, se os mercados de instrumentos financeiros indexados à cotação do petróleo servem para alguma coisa, para além de especular, é para fazer cobertura de risco. Com isto se pretende dizer que, ao contrário do que querem fazer querer à opinião pública, as empresas petrolíferas não estão expostas ao risco de evolução da cotação do crude, muito menos no curto prazo. Se se atentar na evolução do preço internacional da matéria-prima, ao dia a que este artigo foi redigido, a queda de quase 2/3 do seu valor expresso em dólares desde Junho, não teve igual repercussão nos preços dos combustíveis, por exemplo. Ainda assim, as empresas de distribuição de combustíveis só os baixaram para não quebrar esse nexo de causalidade percepcionado pelo consumidor e evitar que este se “aventure” em explorar e/ou aprofundar formas alternativas de diminuir a sua dependência dos produtos derivados do petróleo.

Do que se expôs até aqui, pretende-se ajudar a desmistificar a maioria do frenesim mediático que gira em torno da evolução daquilo que os boletins informativos designam pela “cotação internacional do crude”. Primeiro, porque a inter-relação entre o petróleo – activo financeiro – e a economia real não é não é assim tão relevante, pelo menos para o consumidor comum. Segundo, as razões explicativas que alguns “pseudo-especialistas” insistem em debitar nos meios de comunicação social com base nos fundamentos do crude – de âmbito temporal alargado – têm (muito) pouca validade para explicar dinâmicas de preço técnicas. Isto é, específicas dos mercado de derivados cujos volumes de transacção são maiores – futuros e/ou opções – e para cúmulo, de curto prazo. É um erro comum e ancestral tentar racionalizar realidades desconhecidas sem fazer uma abordagem sistemática.

(Continua)

  1. Até um determinado dia da semana, convencionado pela bolsa onde o contrato é transaccionado – e de conhecimento público – recorre-se ao contrato que expira no mês seguinte (n+1). Depois dessa data convencionada será n+2.
  2. Cujo território abençoado pela existência de ouro negro no seu subsolo contribuiu para economias completamente desarticuladas e incipientes sem qualquer forma de geração de riqueza que não seja pelas contrapartidas que decorrem do contratualizado com as empresas “petrolíferas”. A implantação de regimes despóticos só favorece os interesses destas companhias em claro detrimento das populações destes países que subsistem em condições no limiar da sobrevivência.

Sacudir a água do capote

Tardou mas chegou! Mais de 5 anos depois da eclosão da crise financeira foi deduzida, pelo Departamento de Justiça do governo dos Estados Unidos, a acusação contra uma agência de notação financeira pelas perdas causadas pela subavaliação dos riscos inerentes aos produtos financeiros estruturados (e complexos) – CDOs (Collateralized Debt Obligations) – que tinham como subjacente créditos hipotecários de qualidade duvidosa (sub-prime para os que estão na moda). A visada foi a Standard & Poor’s.

Vamos lá ver uma coisa (que é como quem diz muitas) no processo:

1. A concepção dos tais CDOs era tão complexa que a maioria dos profissionais que lidavam com eles não compreendia a sua génese nem tão pouco as suas implicações. Mais, a teia que se construiu à sua volta – com os seguros (os tais Credit Default Swaps) e resseguros que se constituíram – elevaram o grau de complexidade para o nível Rocket Science. Ah! Olha! Pois foi! Na verdade estes produtos foram mesmo concebidos por sujeitos que eram verdadeiros “tratados” em matemática e física aplicadas que provinham de cursos do tipo…Rocket Science! Acabaram na indústria financeira porque…se pagava melhor!

2. O que toda a gente () quis saber foi da remuneração – anormal – que lhe proporcionava investir nestes produtos, supostamente isentos de risco, uma vez que os preços dos subjacentes (casas) dos colaterais (créditos hipotecários) só tinham um sentido: para cima!

3. Como o processo de montagem destes produtos implicava diferentes etapas bem delimitadas e sem interesses colidentes o “egoísmo” (self interest para os bacanos) dos agentes participantes, assente na teoria da eficiência dos mercados, conduziria a um resultado óptimo. A saber:

a) o cidadão comum comprava uma casa;

b) para tal obtinha financiamento junto duma empresa de crédito hipotecário especializada (mortgage originator) – mercado esse que nos EUA se encontra(va) muito fragmentado e que contava com milhares de operadores todos eles independentes dos grandes grupos financeiros de Wall Street (note-se que o financiamento era sempre obtido junto da banca e no caso dos maiores originators directamente de Wall Street);

c) seguidamente essa hipoteca ou, era vendida a uma empresa de maior dimensão que aglutinava uns quantos milhares ou, já sendo esse o caso, vendia-las aos grandes grupos financeiros de Wall Street;

d) depois, os maiorais de Wall Street faziam o slice n’ dice (agora quis fazer vistaço para dizer que pegavam nos milhões de hipotecas que lhes iam parar às mãos fraccionavam-nas, baralhavam, partiam e distribuíam) e depois o bundling (empacotar) off-balance sheet (o mesmo é dizer que “convenientemente fora dos seus balanços”);

e) esses pacotes eram constituídos por camadas dispostas pela qualidade das hipotecas que as compunham. Exemplo: uma percentagem em tiras de hipotecas de muito boa qualidade, outra de boa qualidade mas não tão boa como a primeira, eventualmente algumas mais até chegar à de pior qualidade….sub-prime. Obviamente que à medida que descíamos os patamares da qualidade a remuneração aumentava.

4. Os ganhos eram transversais!

a) O cidadão comum comprava a casa dos seus sonhos (pesadelos se não se livrasse dela antes de 2007) com condições de financiamento estupendas: como o mercado era extremamente competitivo os spreads vinham esmagados, o empréstimo financiava 100% do valor da casa (e às vezes mais), e garantias?! Quais garantias?!?! Até NINJAS (No Income, No Job, [or] Assets) obtiveram crédito…

b) Os originators ganhavam comissões por angariar créditos hipotecários numa função no brainer: quem estava do outro lado da secretária podia ser um idiota sem formação alguma na matéria. Não tinha que se preocupar: o financiamento estava assegurado. Mais, se desse para o torto, não era nas mãos da empresa: a venda das hipotecas estava mais que assegurada também;

c) Os originators (maior dimensão)/aglutinadores de hipotecas vendiam-nas às carradas para os tubarões de Wall Street e com isso…sacavam comissões chorudas;

d) Os maiorais de Wall Street davam-lhe o toque de Midas e tinham o bundle pronto a vender. As suas forças de vendas acostumadas a produtos financeiros mais convencionais conheciam a parte que lhes convinha – as comissões e prémios avultados – e toca a disparar aquilo para todo o lado, incluindo fundos de pensões!

e) Os clientes, encantados pela maravilha da natureza que eram aqueles produtos – que não entendiam muito bem o que eram mas que pagavam taxas de juro fora do normal e tinham risco diminuto –  compravam. Porque era de casas e do fulgor da economia Americana que estávamos a falar e isso dava todas as garantias. Ainda para mais tinham uma notação boa ou muito boa das agências de notação financeira.

f) O governo federal (e os estatais) dos grandes EUA ganhava também. Alavancava: o crescimento económico com as indústrias ligadas ao imobiliário – construção, acabamentos, mobiliário, etc. -, lucros da banca mas principalmente de Wall Street, emprego, consumo privado porque se gerava um círculo virtuoso que punha mais dinheiro nas mãos dos Americanos. Last but no least…mais impostos obviamente. Para financiar o quê? Expedições militares?! Isso agora não interessa…

Posto isto assistimos ao culminar lamentável dum fenómeno de ilusão colectiva alimentada por ganância alucinogénica da qual ainda estamos a sentir os efeitos da ressaca em que:

– se empolou em demasia a aposta num mercado – o imobiliário – com a benção governamental assente em planos de incentivo à compra de habitação própria (algo que nos parece familiar por estes lados);

– não se regulamentou a actividade das empresas especializadas na concessão de crédito hipotecário (mortgage originators) que desenvolviam a sua actividade em roda livre e sem política nenhuma de análise de risco dos clientes;

– se fez vista grossa à forma – pouco sustentável –  de financiamento das originators: amplamente viciadas em linhas de crédito a curto prazo para conceder a longo. Quando as yield curves se inverteram em meados de 2006, calhou mal…

– não se tutelaram as ligações perigosas entre os originators  e a banca (em particular Wall Street) nem a dimensão das transacções efectuadas;

– se desregulamentou o segmento de mercado dos produtos financeiros complexos e seus derivados. Boa Greenspan!;

–  se desregulamentou o controlo da dimensão dos balanços dos grandes grupos financeiros e a forma como eles consolidavam em situações desta natureza;

– se desregulamentou o controlo dos rácios de capital da banca – deixando ao seu livre arbítrio – para absorver eventuais prejuízos;

– se desregulamentou o controlo sobre a dimensão das transacções efectuadas em nome próprio pelas empresas de Wall Street (que diariamente movimentavam biliões de dólares);

– os engenheiros destes produtos complexos apesar de tratados em matemáticas e física aplicada ignoraram que o mercado imobiliário também tem um ponto de saturação que viria a ser atingido!!!!!

…e a culpa é da Standar&Poor’s?! “E o burro sou eu”?! Parece-me evidente que há muitos culpados no meio disto de tudo mas o principal é quem tem que regular, fiscalizar e produzir legislação enquadrável. E de quem é que estamos a falar?! Do mesmo que moveu uma acção contra a agência de notação financeira. As agências de notação financeira só podem responder pela sua incompetência na análise dos riscos intrínsecos dos tais CDOs. Mas afinal quem não os subavaliou?! E os clientes?! Se não entendiam a complexidade dos produtos, muito simples…não compravam!

Finalizo com uma alegoria.

Se estiver num bar muito animado e o empregado perguntar o que quer tomar. “Não sei”. Sugere as mais convencionais. Perante alguma indecisão apresenta uma bebida nova mas potente. “Pode ser!”. Se no dia seguinte à noite de borga em que tomou não uma mas várias vezes a tal bebida a ressaca for incapacitante vai por as culpas no empregado do bar?!

Contar sorrisos é bem mais fiável…

No início desta semana, Ben Bernanke, presidente da Reserva Federal Norte-Americana proferiu um discurso de ruptura com a actual métrica de medição da performance económica. Na sua prelecção defendeu que se deveria relevar o bem estar e a felicidade no momento de avaliar a prestação económica dum país!

Surpreendente! Vindo dum cidadão dum país que sempre defendeu o consumo voraz de bens e serviços. Especialmente porque tem a seu cargo a condução da política monetária que acomode esse mesmo desígnio – embora actualmente o faça para evitar que entre em espiral de queda.

Maior é o motivo de estupefacção se consideramos que é precisamente o valor de bens e serviços produzidos (mais concretamente o valor acrescentado dentro das suas fronteiras) que é tido em conta para calcular o Produto Interno Bruto (PIB) que por sua vez é utilizado como medida de performance económica.

É de louvar esta sugestão de mudança de eixo na contabilidade nacional até porque no final das contas no mundo actual ficou patente que todo o património padronizado (casa, carro, plasma, telemóvel, sofá, férias, etc.) que “nos foi” impingido contribuíram muito pouco para a nossa felicidade actual…

Está na altura de se centrar no grau de satisfação e de bem-estar das populações a medição da riqueza dum país…

Já agora eu acrescentaria a sustentabilidade do ambiente também…