Vale a pena ler entrevistas destas…

Numa data simbólica para o país (entenda-se, faz parte da história) Eduardo Paz Ferreira, professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa concedeu uma entrevista ao jornal i (aqui na íntegra) da qual se destacam algumas passagens.

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Jornalista: Recentemente houve um editorial do “The New York Times” que afirmava que o caso português era a prova de que esta política de austeridade europeia não funciona. Mas em sondagens verifica-se um dado interessante: é que a maioria dos portugueses condena estas medidas mas não acredita também que haja alternativas partidárias a esta política.

Eduardo Paz Ferreira: Do ponto de vista em que me situo é um drama que o Partido Socialista não seja capaz de recolher o descontentamento. É espantoso verificar nas sondagens que o PS não capitaliza quase nada esta situação. Qual a razão? Pode sempre dizer-se que uma parte da população pensa que o PS teve culpas na crise, outra parte acha que a direcção dos socialistas não é credível e há gente ainda que acha que estão amarrados ao acordo da troika que assinaram. Há muitas explicações, mas não deixa de ser deplorável que o PS diminua as hipóteses daquilo que pode ser uma alternativa dentro do quadro partidário democrático e, por esta via, remeta cada vez mais pessoas para a descrença em relação aos partidos.

J: Não acha que isso não é alheio ao facto de o caminho traçado por Portugal ter tido dois grandes obreiros, o PS e o PSD? E estes comungaram tanto da aposta na integração europeia como da construção de uma espécie de capitalismo rentista pago pelos contribuintes aos grandes grupos económicos…

EDF: De um certo ponto de vista pode dizer-se que isso assegurou a estabilidade política no nosso país. Mas em Portugal, como em muitas partes do mundo, o que aconteceu foi a construção de um grande centrão: deixou de haver alternativas dentro de um quadro político e democrático porque houve essa confluência enorme ao centro. Estes partidos dominaram a cena política portuguesa, mas houve um pequeno interregno que vale a pena recordar, o do epifenómeno do PRD (…) que aparece sob a égide do general Eanes, então Presidente da República, com a esperança de que fosse possível a partir desse lugar fazer qualquer coisa. É evidente que com o Presidente Cavaco Silva, apesar de muitas pessoas acharem que vai haver um governo de iniciativa presidencial, não vai haver coisa nenhuma. Temos um Presidente com menos poderes, mas tem alguns, mas que não os exerce. Na própria Itália, em que o presidente tem muito poucos poderes, Napolitano estava a 15 dias de sair e continuava a tentar resolver a crise: pediu uma comissão de sábios, tentou nomear governo, etc. De Belém o que é que sai? Veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional que veio dar razão a algumas dúvidas do Presidente. Faria todo o sentido que ele tivesse chamado governo, oposição, Concertação Social e partidos para verem o que era possível fazer neste novo quadro. Em vez disso, recebeu atabalhoadamente o governo para lhe dar uma moção de confiança, quando não tem esses poderes. Essa abdicação do Presidente, que está a ter como consequência atirar para o Tribunal Constitucional parte das suas responsabilidade de cumprir e fazer cumprir a Constituição, é trágica.

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J: Mas o que é que ele podia fazer? Podia dissolver o parlamento e convocar eleições? A figura constitucional dos governos de iniciativa presidencial já não existe. Pode fazê-lo por portas e travessas, mas em que sentido?

EPF: Podia ter uma acção com o governo de usar o que foi sempre o meio de acção fundamental de persuasão dos presidentes que é a sua possibilidade de comunicação com a população através da televisão, das mensagens ao parlamento, podendo pôr sobre a mesa os limites daquilo que estamos dispostos a ceder à troika….

J: Acho que só nas questões nucleares como o Estatuto dos Açores é que o vimos ter essa atitude…

EPF: [Risos.] [Meus também] Sim, foi de facto impressionante. Interrompeu as férias para fazer uma comunicação ao país sobre a questão das bandeiras ou coisa parecida. É impressionante que o Presidente da República, que tipicamente tem taxas de aprovação elevadíssimas, até porque não faz nada, tenha neste momento taxas de popularidade baixíssimas.

J: Ramalho Eanes pretendeu ultrapassar um estrangulamento partidário com a criação de um novo partido. Acha que são precisos mais partidos para resolver a crise portuguesa?

EPF: Eu diria que há um momento que pode ser relativamente importante, mas que ainda vem longe, que é o momento da eleição presidencial. Se for possível eleger um Presidente que dê corpo às aspirações populares e à insatisfação, isso seria um factor muito importante. Ora este momento ainda vem longe.

J: E por este andar vai sobrar pouco do país nessa altura…

EPF: O problema é como o resolvemos de imediato. Provavelmente os organizadores das grandes manifestações têm melhores condições que eu para responder a essa questão. É evidente que a força das manifestações também existe dado não terem objectivos partidários, mas isso é também a debilidade desse tipo de processo. Sendo uma grande manifestação de força, não surge com um rosto e um projecto que possa corporizar uma interlocução com o governo. Um governante um pouco cínico [excelente eufemismo] até poderia dizer: “Eu até gostaria de falar com os manifestantes, mas quem são eles?” Conhecemos alguns organizadores, mas eles são tão democráticos que se dissolvem num quase anonimato.

J: Pode ver isso de outra forma. As manifestações expressam um “não”. E essa vontade não precisa de rosto.

EPF: Mas esse “não” consubstancia-se em quê?

J: Em dar a voz ao povo. Em eleições.

EPF: Como os organizadores não pensam apresentar-se, teríamos o actual quadro partidário a ir às urnas.

J: Mas não acha que pode ser esclarecedor? Desta vez o primeiro-ministro não nos vai poder dizer que vai baixar os impostos, terá mesmo de dizer o remédio que vamos tomar.

EPF: No princípio da conversa eu parecia naïf em relação à Europa, agora parece-me que o Nuno é que está a ser mais naïf. No actual quadro partidário, se for a eleições vai ter novamente partidos a prometerem o que não vão fazer. Mais concretamente, o principal partido da oposição a apresentar um programa que se apressará a deitar fora se for eleito. Desta forma o resultado das eleições arrisca-se a ser mais dramático do ponto de vista democrático.

J: Não acha que há uma pequena diferença que faz uma enorme diferença? Se uma população conseguir derrubar um governo revela um poder que não se esgota neste momento e que pode voltar a funcionar. E isso faz toda a diferença do ponto de vista democrático. Citando uma passagem de Adriano Moreira que cita no seu livro, isso demonstra que a legitimidade para governar não se esgota no acto eleitoral.

EPF: Estou totalmente de acordo. A questão é se seria desejável que aparecesse uma nova força política. Em princípio sim, o que essa força devia propor é que é a minha grande dúvida. A Itália mostrou a falência dos partidos tradicionais, o fracasso dos governos tecnocráticos de Mario Monti e agora o desastre de partidos de protesto como o de Beppe Grillo. Tudo falha. Eu não acredito muito dos programas elaborados por sábios e tecnocráticos, mas apesar de tudo pergunto-me se não é possível criar um movimento de opinião que apresente um programa alternativo e credível e depois pergunte quem se quer associar a isso, sejam os partidos sejam os movimentos sociais. Por exemplo, e vou dar um exemplo que ainda por cima deu mau resultado, mas que acho interessante: a ideia de se apresentarem às primárias da esquerda candidatos partidários que não são sequer militantes do partido é uma ideia fantástica. Eu gostaria que o PS em vez de ter primárias que acabam com resultados coreanos, como vimos na eleição de António José Seguro com 96% dos votos, fizessem alguma coisa desse género. Que os partidos de esquerda chamassem os eleitores de esquerda a pronunciar-se sobre quem queriam ver no governo.

J: Numa sociedade em que os instrumentos mediáticos estão na mão dos grupos de comunicação privados, pouco conhecidos pelas suas simpatia pela esquerda, isso não punha a chave da eleições dos candidatos dos partidos de esquerda nesses grupos? Teríamos líderes de esquerda “eleitos” por televisões de direita?

EPF: Mas não foi assim no passado? Se pensar nisso, o engenheiro Sócrates esteve numa televisão, Pedro Santana Lopes também, e até há bastonários da Ordem dos Advogados que saíram de televisões.

(…)

Valeu ou não?!

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